segunda-feira, 16 de março de 2020







A História de Um Filho da Puta Durão 




"Uma noite ele apareceu na porta,
molhado magro espancado e aterrorizado.
Um gato branco vesgo e sem rabo.
pus ele pra dentro e o alimentei
e ele ficou cresceu até pegar confiança em mim
até que um amigo entrando na garagem
passou com o carro por cima dele.
Levei o que sobrou para o veterinário
que disse, “sem muita esperança...
dê essas pílulas para ele...
sua coluna está esmagada,
mas já foi esmagada antes
e de alguma maneira emendou,
se ele viver nunca mais andará,
veja essas radiografias, ele foi baleado,
olhe aqui, as balas ainda estão lá...
e mais, ele já teve um rabo um dia, alguém
o cortou fora...”


Levei o gato de volta, era um verão bem quente,
um dos mais quentes das últimas décadas,
pus ele no piso do banheiro,
dei água e pílulas para ele,
ele não comia, ele não tocava na água,
mergulhei meu dedo nela
e molhei sua boca e falei com ele,
eu não saí dali, investi um bom tempo no banheiro
e conversava com ele e tocava nele com cuidado
ao que ele me olhava
com aqueles olhos azul-claros vesgos
e conforme os dias passavam
ele fez seu primeiro movimento
se arrastou com as patas dianteiras
(as traseiras não funcionavam)
ele conseguiu chegar à caixa de areia
se arrastou pra dentro,
foi como se o clarim de uma possível vitória
soprasse naquele banheiro e pela cidade afora,
eu me identifiquei com aquele gato
– Eu me dei mal, não tão
mal assim mas mal o bastante...


Uma manhã ele se levantou,
ficou de pé, caiu pra trás e
apenas olhou pra mim.


"Você consegue", eu disse pra ele.


Ele continuou tentando, se levantando e caindo,
finalmente deu alguns passos,
ele parecia um bêbado,
as patas traseiras não queriam funcionar mesmo
e ele caiu de novo, descansou,
aí se levantou.


O resto você sabe:
hoje ele está melhor do que nunca,
vesgo, quase sem dente, mas o encanto está de volta,
e aquele olhar nunca abandonou seus olhos...


E hoje, às vezes, sou entrevistado,
eles querem saber sobre a vida e a literatura
e eu fico bêbado e levanto meu gato vesgo,
baleado, atropelado, de rabo arrancado
e falo, “olha, olha isso!”


Mas eles não entendem, eles dizem algo do tipo,
“Você disse que foi influenciado por Céline?”


“Não”, eu levanto o gato,
pelo que acontece,
por coisas como essa, por isso, por isso!”


Eu chacoalho o gato,
levanto ele sob a luz esfumaçada e bêbada,
ele está tranquilo, ele sabe...


É aí que as entrevistas acabam
embora eu fique com orgulho às vezes
quando vejo as fotos depois


e lá estou eu e lá está o gato
e nós somos fotografados juntos.


Ele também sabe que isso é besteira,
mas ajuda de alguma maneira."



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