quarta-feira, 4 de setembro de 2019






Mulheres 
"Uma mulher que quase nunca penteava o cabelo, que só se vestia de preto, seu luto de protesto contra a guerra, que deixou de comer uva desde que os agricultores entraram em greve, que era comunista e escrevia poemas, que nunca perdia um congresso amoroso ao ar livre, que fazia cinzeiros de barro, fumava e tomava café sem parar, que vivia às custas da pensão que a mãe e uma série de ex-maridos lhe davam, que morava com uma porção de homens e adorava torrada com geléia de morango. Que usava os filhos como armas de defesa e por isso tinha um atrás do outro. Embora não conseguisse entender como é que um homem podia ir pra cama com ela, a verdade, é que, evidentemente, tinha ido e a embriaguez, porra, não era desculpa. Só que nunca mais ficaria tão bêbado assim. Lembrava-lhe, intrinsecamente, uma fanática religiosa às avessas - tinha sempre razão, entende xará? Porque todas as suas idéias estavam absolutamente certas: pacifismo, amor, Karl Marx, todo esse papo furado. Também não acreditava em TRABALHO, mas, no fundo, quem acredita? O último serviço que prestou foi durante a Segunda Guerra Mundial, quando se alistou no Serviço Feminino do Exército, pra salvar o mundo da fera que encerrava pessoas vivas nos fornos dos crematórios. Hitler. Já no campo intelectual a guerra era santa, entende xará? E agora queria botar o próprio marido no forno.
A privada nunca entupia antes dela chegar, nela jogava punhados de cabelo grisalho, tudo quanto é proteção pra buceta e papel higiênico aos montes, verdadeiros trambolhos. Chegava mesmo a pensar que estava imaginando coisas, mas no momento em que ela pisava em casa, a privada começava a entupir, as formigas a aparecer pelos cantos e tudo quanto é espécie de idéias e pensamentos sombrios e atrozes lhe ocorriam à lembrança - por causa dessa pessoa, tão boa, que era contra a guerra, contra o ódio e completamente a favor do amor.
Graças a Deus por Tina, esta criança tão linda, que saiu do corpo dessa mulher, pensou, senão do contrário desconfio que acabaria matando essa peste.
Ela entrou no banheiro e depois abriu o chuveiro. Deve ter ficado ali, embaixo daquela ducha, umas 2 horas, qualquer coisa no jeito da água escorrer pelo crânio lhe dava uma forte sensação de segurança. Precisou entrar um instante pra Tina fazer xixi, mas a mulher nem se deu conta da presença dos dois ali. Estava com o rosto e a alma voltados para o céu: pacifista, poética, mãe, sofredora. A que não comia uva, a que era mais pura que merda destilada. Enquanto a conta da água e da luz aumentavam e dançavam sobre aquele espírito pujante. Mas quem sabe não era uma estratégia do Partido Comunista - deixar todo mundo louco?"

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